Nos últimos anos, o mercado de cervejas sem álcool cresceu exponencialmente, impulsionado por movimentos como o Dry January e por uma busca crescente por alternativas saudáveis ao consumo tradicional de bebidas alcoólicas. Contudo, muitos consumidores relatam uma sensação curiosa: mesmo sem álcool significativo, algumas dessas cervejas provocam efeitos comparáveis à embriaguez leve. Rubor facial, euforia, relaxamento e até risos soltos — tudo isso sem um gole sequer de álcool real, ao menos em teoria.
A questão então se impõe: como é possível sentir-se embriagado com uma bebida que promete justamente o oposto?
A resposta está no cérebro — não na garrafa

As chamadas “cervejas sem álcool” geralmente contêm até 0,5% de álcool por volume (ABV), quantidade considerada inócua para efeitos fisiológicos relevantes. Em muitos países, esse limite permite que elas sejam rotuladas como “não alcoólicas”. No entanto, mesmo com esse teor mínimo, a simples associação da bebida ao ritual etílico pode ser o suficiente para desencadear sensações muito reais.
Segundo décadas de estudos em neurociência comportamental e psicologia experimental, o que bebemos não é apenas um ato físico — mas também simbólico. O cérebro é treinado ao longo dos anos a associar o cheiro, sabor, textura e o contexto social da cerveja a determinadas respostas emocionais e comportamentais.
O poder do efeito placebo

Um dos conceitos mais relevantes para entender esse fenômeno é o do efeito placebo, termo usado para descrever mudanças reais no corpo provocadas apenas pela expectativa de um determinado resultado. No caso da cerveja sem álcool, o que ocorre é um tipo específico de placebo chamado de expectativa alcoólica.
Estudos mostram que pessoas que acreditam estar consumindo álcool — mesmo que, de fato, estejam ingerindo uma substância neutra — podem apresentar sintomas típicos da embriaguez. Isso inclui diminuição das inibições sociais, leve sonolência, sensação de relaxamento e até alteração no tempo de reação.
Um experimento realizado na Universidade de Pittsburgh observou esse comportamento. Voluntários que receberam bebidas não alcoólicas (mas foram levados a crer que continham álcool) demonstraram mudanças expressivas na forma como se comportavam, falavam e reagiam a estímulos externos. Não havia álcool atuando sobre o corpo — apenas o cérebro operando com base na expectativa de seus efeitos.
Sabor, cheiro e contexto: ativadores sensoriais

Outro fator importante é o papel dos sentidos. O sabor amargo do lúpulo, a carbonatação e o aroma maltado ativam regiões do cérebro que costumam ser estimuladas quando se consome uma cerveja tradicional. Essa memória sensorial é poderosa, reforçando a ilusão de que algo “mudou” quimicamente no corpo.
Além disso, o ambiente social desempenha papel decisivo. Se uma pessoa consome cerveja sem álcool em um contexto descontraído, como festas ou eventos esportivos, a atmosfera coletiva pode amplificar as sensações subjetivas de prazer e desinibição.
Não é “só psicológico” — é neurobiológico

É importante destacar que essas reações não são simples frutos da imaginação. A ativação de circuitos neurológicos ligados ao prazer, recompensa e habituação é comprovadamente real. O sistema nervoso responde às expectativas com a liberação de neurotransmissores como dopamina, serotonina e endorfinas — substâncias que, em certos contextos, podem replicar parte da sensação típica do álcool.
Essa resposta é ainda mais acentuada em pessoas que consomem regularmente bebidas alcoólicas e conhecem bem os efeitos associados. O cérebro dessas pessoas já criou “atalhos mentais” que associam determinados estímulos sensoriais a respostas emocionais.
Sentir-se “levemente embriagado” após consumir cerveja sem álcool é, portanto, um fenômeno neuropsicológico real, embora não provocado pela substância química tradicional do álcool. É resultado de uma interação complexa entre memória sensorial, contexto social e expectativa comportamental.
O corpo não absorve quantidades significativas de álcool — mas o cérebro acredita que sim. E, como muitas vezes acontece no universo das percepções humanas, essa crença é suficiente para transformar a experiência.
Fontes
- Marlatt, G. A., Demming, B., & Reid, J. B. (1973). “Loss of control” drinking in alcoholics: An experimental analogue. Journal of Abnormal Psychology, 81(3), 233–241.
- Sayette, M. A., Breslin, F. C., Wilson, G. T., & Rosenblum, G. D. (1994). An evaluation of the balanced placebo design in alcohol administration research. Addiction, 89(6), 667–676.
- Moss, A. C., Albery, I. P. (2009). A dual-process model of the alcohol–behavior link for social drinking. Psychological Bulletin, 135(4), 516–530.
- Christian S. Hendershot & Mark S. Goldman (2010). Expectancy effects as mediators of placebo responding. Current Directions in Psychological Science, 19(2), 96–100.
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